quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Rio de Janeiro, 30 de setembro de 1908 - CORREIO DA MANHÃ

Correio da Manhã – Rio de Janeiro, Quarta-feira, 30 de setembro de 1908 - Pág. 02. 
  

Morreu Machado de Assis. Perde a nossa língua um dos seus mais vigorosos e profundos escritores. 
Com ele desaparece a mais leve e a mais encantadora das nossas prosas, a mais completa e a mais perfeita das organizações literárias que possuímos. 
Poeta, romancista, dramaturgo e jornalista, era Machado de Assis o tipo culminante e o mais simpático do nosso mundo de letras. 
Sua perda é irreparável. Num país como o nosso, já tão pobre de espíritos brilhantes como o seu, esse desaparecimento é mais importante do que parece. 
Finda com o Memorial dos Aires o ciclo glorioso da sua obra, livro recente e a cujo sucesso literário ainda ele pôde assistir nas vésperas da morte. 
Não mais nos será dado ler novos primores da pena que escreveu Quincas Borba e D.Casmurro. Machado de Assis desaparece e embora cubram-lhe  a tumba de flores, e a sua memória da mais profunda saudade, do seu estro só nos restará a lembrança que nos seus livros, no entanto, palpitará sempre luminosa e forte como um sol.                                                           

 (Manteve-se os “aparentes” erros do texto do jornal)


Quem entrasse, às 4 horas, no Garnier havia de ver, invariavelmente, um homem pequeno, franzino, de barba curta e quase branca, sempre numa das cadeiras que correm a fila das brochuras francesas, entre as pernas um indefectível guarda-chuva. 
Tinha um ar cansado, si bem que a filosofia lhe sorrisse todas às vezes que um chapéu se erguesse ou uma mão apertasse a sua, sempre com grande interesse e respeito. 
Era Machado de Assis. 
Fechada a sua repartição, subia ele Ouvidor acima, caminho do Garnier, àquela mesma hora sempre, com o seu passo rítmico e nervoso de quem vai ao cumprimento de um dever sagrado. 
Entrava de chapéu na mão, porque todos se descobriram à sua passagem e depois de relancear a vista pelas lombadas dos livros  expostos, procurava a sua cadeira e punha-se a folhear uma brochura qualquer, sempre com um grande ar de abstração e tristeza. 
Mas iam chegando, lentamente, os grupos, as mãos que se lhe estendiam, as frases que indagavam pela sua saúde, e ele, sempre  muito risonho, muito tímido, no meio daqueles homens que o cercavam era como uma criança mimada, querida, bajulada. 
Um verdadeiro enternecimento.  
E velhos e novos, acadêmicos e poetas que surgissem, óculos e cabeleiras, cercavamno com interesse, com curiosidade ou admiração. 
De toda a grande nave da livraria, era a  figura mais querida, a mais vista e a mais admirada. Dizia-se – o mestre; olhava-se a sua cabeça branca quando ele se descobria, com 
veneração, como que a dizer baixinho – aquele foi o que escreveu Brás Cubas... 
Estranha e original organização que não  pode ter um relevo merecido nestas linhas escritas ao correr da pena. 
Era um modesto e um generoso. Duas revelações superiores do seu espírito. 
Detestava a  reclame, a efusão encomiástica da frase dos outros sobre as suas obras; sorria quase dolorosamente quando lhe diziam que era o maior dos nossos homens de letras. 
Uma modéstia verdadeiramente mórbida. 
Não dizia jamais os seus projetos literários, sempre dentro da maior reserva, mesmo para com os seus íntimos. Entregava os originais dos seus livros às escondidas, pedia que nada se dissesse aos jornais e da sua obra só se vinha a saber, quando aparecia na montra das livrarias, e se azafamavam os caixeiros em vender edições que se esgotavam rapidamente. 
De uma generosidade absoluta, odiava a  polêmica, aceitava a todos, a todos sorria, confundindo no mesmo olhar de simpatia o seu maior amigo e o seu maior inimigo. Da sua boca raro saía uma palavra má, ou de censura para um homem ou para uma coisa. Verdade que as suas afirmações eram raras e grande, enorme, a sua reserva. 
Sente-se isso em toda a sua obra. 
Dificilmente afirmava. 
Dir-se-ia guardar sempre um julgamento posterior para o julgamento por ele próprio afirmado. 
Perguntassem-lhe, por exemplo, sobre a superioridade do poeta A sobre o poeta B, ele 
dizia: 
- A é muito bom, porém muito bom também é B. Ambos são muito bons; daí, talvez, ambos não valham nada... 
Dizem que sempre foi assim, Machado de Assis. 
A última vez que o vimos e que indagamos pela sua saúde já ferida de morte: 
- Mestre, então, vai melhor? 
Ele respondeu: 
- Não sei. Já me senti muito mal, porém parece que não estou melhor. Dizem os médicos que isso é sem cuidado. Não sei se deva crer nos médicos. 
Ainda o mesmo, caminho da morte, com quase setenta anos, com seu eterno temor de nada afirmar, como que se tudo nesta terra não merecesse nem uma certeza nem uma afirmação. 


Dados Biográficos 

Machado de Assis era filho de Francisco José de Assis e d. Maria Leopoldina de Assis e nasceu no Rio de Janeiro a 21 de junho de 1839. 
Vocação decidida para as letras, exerceu arte tipográfica na Imprensa Nacional, onde serviu de 1856 [?] a 1858 [?]. 
Já vantajosamente conhecido como distinto literato, foi, na reforma da Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas em 1873[?], nomeado primeiro oficial nesta secretaria, hoje da Indústria, Viação e Obras  Públicas, onde exercia o cargo de diretor da diretoria do comércio, tendo em 1878 feito parte da comissão incumbida de organizar a reforma da legislação das terras. Em 1878 foi também nomeado para a comissão encarregada de organizar o [ilegível] técnico da marinha. 
Foi membro do Conservatório Dramático, de várias associações de letras e oficial da ordem da Rosa. 
Escreveu as seguintes obras: – Queda que as mulheres têm para os tolos. Tradução do Francês. Rio de Janeiro, 1861 [?]. 43 págs. [ilegível] da atual literatura brasileira; – No Novo Mundo, de março de 1873 [?]; – [ilegível] para uso dos mestres-escolas; pelo dr. Gallard. Rio de Janeiro, 1873 [?], 83 págs, [ilegível]; – São quatro conferências com eliminação do que sendo privativo à França, não podia adaptar-se ao Brasil e foram antes publicadas na revista A Instrução Pública; – Ministério da Agricultura. Terras: compilação para estudo. Rio de Janeiro, 1886 [?]: – Desencantos: fantasia dramática. Rio de Janeiro, 1861, 76[?] págs, in-S; – Teatro de Machado de Assis. Volume 1. Rio de Janeiro, 1863. VIII – 83 págs, in-S. Contém 
esse volume:  O caminho da porta, comédia em um ato, apresentada pela primeira vez no Ateneu Dramático em setembro de 1862 e O protocolo, comédia em um ato, representada no mesmo teatro em novembro do dito ano. É precedido de uma carta de Quintino Bocayuva; – Quase ministro, comédia em um ato. Foi publicada no Almanak Ilustrado da  Semana Ilustrada para 1864. Rio de Janeiro, 1864, de págs 9 a 33, e depois em volume, em 186 [?]; – Os deuses de casaca, comédia em um ato com um prólogo e um epílogo em verso alexandrino, representada pela primeira vez  a 28 [?] de dezembro de 186[?] na Sociedade Arcádia Fluminense. Rio de Janeiro, 1866, VIII – 59 págs. In-S. É oferecida ao conselheiro 
[ilegível] F. de Castilho fundador  e presidente desta sociedade; –  Tu só tu, puro amor, comédia em um ato. Rio de Janeiro, 1881, VII – 71 págs, in-S. – Foi  escrita especialmente e representada por ocasião do tricentenário de Camões. Dela se fez uma edição nítida de cem exemplares enumerados. Foi publicada antes na Revista Brasileira, volume [ilegível], 1880 [?], págs 31 a 70; – Crisálidas, poesias com um prefácio do dr. Caetano Filgueiras. Rio de Janeiro, 186[?], 178 [?] págs, in-S; –  Falenas, poesias, Paris 1870, 216 págs, in-S; – Americanas, poesias. Rio de Janeiro, 1875, 219 pags, in-8; – A derradeira  [ilegível], poesia 
publicada no livro Marquez de Pombal, obra comemorativa do centenário de sua morte; – O trabalhadores do mar Hugo. Rio de Janeiro, 1866, três volumes de 230, 232 e 203 [?] págs, n-8. É um romance traduzido para o Diário do Rio de Janeiro onde foi primeiramente publicado desde 16 de março deste ano, ao mesmo tempo que se publicava a obra em Paris e quando outra tradução se fazia em Lisboa; –  Contos Fluminenses: “Miss Dólar”, “Luiz Sans”, “A mulher de preto”, “O Segredo de Augusto”, “Confissão de uma moça”, “Frei Simão”, “Linhas retas e curvas”. Paris. [ilegível] 375 págs. In-8; – Ressurreição – Romance. Rio de Janeiro. 1872, 215 págs. In-S; – Helena: romance. Rio de Janeiro (sem dat). 330 págs. In-S – Saiu em folhetim no periódico O Globo: – Histórias de meia noite. Rio de Janeiro. 1873[?], 235 págs. In-S; – Iaiá Garcia: romance. Rio de Janeiro; – Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de 
Janeiro, 1881, 396 págs. In - 8: –  Foram dadas à publicidade antes na  Revista Brasileira, 1880, vol. 3, pág 373 [?]; vol. 1, págs 5 – [ilegível], 167 [?], 233 e 293 [?], vol 5, págs [ilegível]; – Papéis avulsos. São doze contos; – Histórias sem data. Rio de Janeiro, 1881, 279 págs, in-S: São pequenas histórias ou contos, a saber: “A igreja do diabo”, [ilegível], “Último capítulo”, “Cantiga de Esperança”, “Uma senhora”, “Singular ocorrência”, “Fulano”, “Capítulo dos chapéus”, “Galeria póstuma”,  “Canto Alexadrino”, “[ilegível] anedota pecuniária”, “A segunda vida”, [ilegível], “Manuscrito de um sacristão”, “As academias de Sião”, “Noite de Almirante” e “A senhora do Galvão”; – A mão e a luva, romance. Rio de 
Janeiro; – Quincas Borba. Rio de Janeiro, 189[?]; – Várias Histórias. Rio de Janeiro, 1893. São vários contos, a saber: “A cartomante”,  “Entre Santos”, “Uns braços”, “Um Homem célebre” e “A causa secreta”; –  As bodas de Joaninha. Zarzuela em um ato, cantada pela primeira vez na ópera nacional em 1861; – Os descontentes, comédia de Racine – [ilegível] – comédia em três atos; – O Barbeiro de Sevilha, comédia de Beaumarchais, em quatro atos. [ilegível]; – O anjo da meia-noite, comédia, 1866; – O suplício de uma mulher, drama em três atos, de E. Giardin. 1866; – “[ilegível]”, comédia de Octavio Feuillet; – A família Benoiton, comédia em cinco atos, de Victorien [ilegível], representada pela primeira vez no Ginásio 
Dramático a 2 de maio de 1867; – Não consultes médico, comédia representada no Cassino Fluminense. Colaborou para vários periódicos e revistas como a  Marmota Fluminense,  O futuro, a  Gazeta de Notícias,  O Cruzeiro, onde escreveu folhetins com o pseudônimo de Eleasar, a  Semana Ilustrada, o Arquivo Popular e a  Ilustração Brasileira onde escreveu as crônicas quinzenais, assinadas por Manassé. Fez finalmente parte da redação do Diário do Rio de Janeiro, e redigiu: –  O Espelho, folha periódica, política e crítica dos teatros. Rio de Janeiro, 1870, in – [ilegível]  Dom Casmurro,  Páginas recolhidas,  Poesias completas, Relíquias de casa velha e Esaú e Jacó. 
A sua última obra foi Memorial de Aires.*    
   
                                                          

  O corpo 

A morte não alterou as feições do ilustre romancista. O corpo de Machado de Assis foi colocado em um caixão de primeira classe, às 5  horas da tarde na sala da frente do prédio número 18, da rua do Cosme Velho, pelos senhores Dr. Graça Aranha, Armando Araujo, Ariosto Braga, Mario Alencar, Paulo Tavares e Arthur Azevedo, sendo espalhado sobre o seu cadáver muitas flores naturais. 
Essa piedosa homenagem foi feita por senhoras da vizinhança e da amizade do extinto, as quais assim perfumavam aquele ambiente de dor e de luto.


O enterro 

Às 7 ½ horas da noite, precisamente, foi transportado o caixão para um coche de primeira classe que seguiu em direção à Academia de Letras, de que o ilustre extinto era presidente. 
Tomaram das alças do caixão as senhoras Guiomar Schimdt de Vasconcellos, baronesa de Vasconcellos, Fausta Pinto da Costa, Cecilia Pinto da Costa, Regina Pinto da Costa, Maria Luiza Pinto da Costa, Fanny Martins Ribeiro de Araujo e Alcina Matias Ribeiro. 
Acompanharam o cortejo fúnebre os senhores Dr. Graça Aranha, Arthur Azevedo, Paulo Tavares, comendador Marinhas, Antonio Sampaio, Frederico Souza e outros. 


Estiveram presentes: Barão e baronesa de Vasconcellos, Mario  de Alencar, dr. Afranio Peixoto, família 
Emilio Maia, Alfredo Ford, Joaquim Medrado, Mario Antonio da Costa, dr. A. M. Marinhas, Afranio Antonio da Costa, Mario de Lima Barbosa, dr. Leite e Amaral, dr. Jayme de Vasconcellos, dr. Armando de Araujo e  senhora, Ariosto Braga, dr. Miguel Couto, dr. Alfredo de Andrade, Arthur Azevedo, major  Bernardo de Oliveira, Coelho Neto, Rodrigo Octavio, dr. Carlos Peixoto, presidente da Câmara dos Deputados Gomes da Silva, Alvaro Peres, pela Companhia Dramática Brasileira  da Exposição, d. Julia Lopes, Luiz Honorio, Alvaro Paes, Arthur Marques, Victor Rossigneux e Frederico Souza, representando o dr. Oscar de Souza e muitas outras pessoas.


 Carvalho de Tasso 

O dr. Joaquim Nabuco recebeu do síndico da localidade onde está o Carvalho de Tasso, como presente, uma artística caixa de  cedro contendo um ramo da [ilegível]. O dr. Joaquim Nabuco [ilegível] presente a Machado de Assis. Isto em 12 de abril de [ilegível]. O ilustre diplomata escreveu a seguinte carta ao dr. Graça Aranha: 
“Meu caro amigo – O que vai nessa caixa é um ramo do carvalho de Tasso, que lhe mando para oferecer a Machado de Assis do modo que lhe parecer mais simbólico. 
O melhor é talvez que a Academia lho  ofereça, mas quando e como, são problemas para o senhor resolver. As palavras [ilegível]”. 
Machado de Assis, sentindo que ia morrer, escreveu uma carta a Mario de Alencar, na qual lhe pedia que quando deixasse de existir, entregasse aquela caixa a Academia de Letras.



Certidão de óbito 

A certidão de óbito do ilustre morto é a seguinte:

Olympio da Silva Pereira, oficial do registro civil e escrivão vitalício da 6ª pretoria do Distrito Federal, em 29 de setembro de 1908 – Certifico que do livro de registro de óbitos sob número cinqüenta e dois consta a folha 63, o registro de óbito de Joaquim Maria Machado de Assis: idade 69 anos, viúvo, natural desta capital, funcionário público, cor branca, falecido de arterio-clerose, às 3 e 20 horas da manhã do dia 29  de setembro de 1908 a residência do próprio finado rua Cosme Velho nº 18 [?]. Deixou testamento. 


A câmara ardente 


Não é verdadeiramente uma câmara ardente a  antiga secretaria do presidente da Academia Brasileira. A sala está transformada [ilegível]. 
O catafalco erguido no centro da sala está coberto com pesada colcha de veludo preto com bordados a ouro simbólicos. 
Na parede fronteira à entrada da sala foi erguida uma capela, cujo fundo é de lágrimas e frisos de ouro, bordados a seda. 
O teto tem uma grande aranha de veludo, em diagonal. 
                                                          
* Estava grafado assim no jornal. Certamente refere-se à arteriosclerose. As sedas, os símbolos e todo o material da essa é novo e não usado em enterros comuns. 
Para isso tem a Santa Casa de misericórdia um serviço especial reservado para casos extraordinários. 
O chão também está forrado de veludo preto até à entrada do edifício. 

                                                 


Notas 


Foram passados telegramas aos acadêmicos ausentes: 
Joaquim Nabuco, Aloysio Azevedo, Magalhães, Medeiros e Albuquerque, Oliveira Lima, [ilegível] da Gama e Guglielmo Ferrero, membros no estrangeiro, da Academia de Letras Brasileira. 
– Os acadêmicos velarão alternadamente durante a noite e dia o cadáver do pranteado homem de letras até ao momento do enterro, amanhã, às 4 horas da tarde. 
– A escritora d. Julia Lopes de Almeida depositou sobre o caixão de Machado de Assis num bouquet de flores naturais.  
– Como uma homenagem prestada a memória do eminente literato dr. Machado de Assis, o Instituto Affonso Penna suspendeu ontem as suas aulas. 
O dr. Carlos de Novaes, em eloqüentes frases, enalteceu os méritos do distinto finado, mostrando quanto era grande a perda para a literatura nacional. 
– Pelo dr. Graça Aranha, o ministro do interior recebeu comunicação do falecimento do literato Machado de Assis. 
O dr. Tavares de Lyra declarou haver resolvido que os funerais de Machado de Assis fossem por conta do Estado. 
– O coronel Souza Aguiar, comandante do Corpo de Bombeiros, em companhia de uma comissão de oficiais, assistirá no enterro de Machado de Assis, fazendo-se acompanhar 
da banda do mesmo corpo.
*
  
FIM 
                                                          
*
 Texto sem identificação no jornal.

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